Souto Amaral Advocacia

Apropriação Indebita Previdenciária

Da Apropriação Indebita Previdenciária – art. 168-A, §1º, inciso I, do Código Penal

A privação da liberdade de alguém deve ser medida pela extensão do dano causado à sociedade e do comportamento delituoso do delinquente. É uma medida de caráter excepcional.

Para a configuração do delito em questão, mister o preenchimento dos requisitos legais e da vontade do agente em, estando na posse do bem, se recusar a entregar ao seu legitimo dono.

Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional.

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada a previdencia social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;”

Eis o teor da norma positivada a autorizar a penalização do agente, ainda que mereça inúmeras criticas, sendo uma delas a penalização pelo não recolhimento, que na verdade é passivo da empresa. Divida que não foi saldada.

Há na legislação, Lei 9.983, de 14.7.2000, que acrescentou o artigo 168-A, ao Código Penal, flagrante dicotomia com nossa Carta Fundamental, que garante que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal.)

Prevê a Constituição Federal que não haverá prisão civil por divida, a exceção do inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. (art. 5º, inciso LXVII, CF).

Não há dúvida que o legislador buscou, com a edição da indigitada lei, a satisfação dos créditos tributários, a fim de fazer frente as dotações orçamentárias do erário. No entanto, com a vênia necessária, o fez em flagrante violação do quanto disposto na Carta Fundamental.

Ao dizer que ninguém será preso civilmente por dívida, não distinguiu a Carta Magna se pessoa física ou jurídica (sócios), o que abrange a todos indistintamente. Se a empresa, já sobrecarregada de tantos encargos, cotidianamente conhecido, se ve em voltas a dificuldades, nada mais razoável que dar prioridade a certos encargos, em especial ao pagamento dos salários dos seus funcionários, que é garantia constitucional.

Um dos pilares de sustentação da ordem econômica, sem dúvida é o primado e o valor social do trabalho e da livre iniciativa, possibilitando a redução das desigualdades sociais. Tem ela por fim assegurar a todos existência digna, observando os princípios da livre concorrência e a busca do pleno emprego.

Neste passo, é evidente a inconstitucionalidade da referida lei, no que tange ao não recolhimento, por se tratar de dívida.

Agora, quanto a tipificação do delito em si, temos que é preciso que o agente tenha a vontade deliberada de deixar de repassar as contribuições. Elemento subjetivo do tipo. Trata-se de dolo especifico, sem o qual não subsiste a ação penal.

Deixar de repassar é o elemento objetivo do tipo, havendo a necessidade da conjugação também da vontade do agente (elemento subjetivo) em não entregar o bem jurídico tutelado (dolo), no caso as contribuições sociais. É preciso estar perfeitamente identificado esse elemento, onde não haja dúvida que o agente tinha a intenção de não repassar aos cofres públicos as contribuições sociais.

O simples atraso no recolhimento da contribuição social em si não se configura em crime de apropriação indébita ou sonegação fiscal, havendo meios adequados e hábeis para a satisfação do crédito, respeitado o devido processo legal.

Se o sócio da empresa não tem a intenção ou se comporta de maneira tal com o propósito de cometer qualquer delito, notadamente quanto a imputação que lhe é feita, não há como se criminalizar.

O crime inexiste se não houve a posse ou detenção do bem tutelado e nem se comportou no sentido de usufruir do valor como se seu fosse. Muitas vezes a empresa sequer consegue enxergar materialmente os valores da contribuição social, por razões de ordem econômicas.

É corriqueiro ver denuncias embasadas somente em auto de infração e não em lançamento definitivo do tributo. Se é multa não é passível de apropriação mas apenas de cobrança, através do executivo fiscal.

As dificuldades financeiras de uma empresa estão classificadas como uma excludente de ilicitude, já que não constitui crime aqueles praticados em estado de necessidade, com prevê o artigo 23, I, do Código Penal.

Sabidamente toda empresa tem sua estrutura e depende de seus empregados e terceiros colaboradores para o perfeito funcionamento, que é a base de sustentação de riqueza e primado do trabalho.

Se a empresa não detem a posse das contribuições sociais que foram deixadas de ser repassadas ao ente Estatal não podem ter se apropriado delas, havendo falta de justa causa para a ação penal.

Somente quando a fonte de riqueza e geração de emprego, através dos seus sócios ou prepostos, age de maneira deliberada e com unidade de proposito, se articulando para subtrair da previdência social as contribuições descontadas dos seus empregados para o fim de usufruir em proveito próprio, “animus rem sibi habendi”, é que pode haver criminalização.

Se o numerário ficou nos meandros da empresa, como hipótese, punível seria a pessoa jurídica, sabendo-se que a pena não passara da pessoa do condenado. (art. 5º, inciso XLV, CF). Como a pessoa jurídica não é passível de crime, há impossibilidade jurídica da ação penal.

“No âmbito dos crimes contra a ordem tributária, tem-se admitido, tanto em sede doutrinária quanto jurisprudencial, como causa supralegal de exclusão de culpabilidade a precária condição financeira da empresa, extrema ao ponto de não restar alternativa socialmente menos danosa que não a falta do não-recolhimento do tributo devido. Configuração a ser aferida pelo julgador, conforme um critério valorativo de razoabilidade, de acordo com os fatos concretos revelados nos autos, cabendo a quem alega tal condição o ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. Deve o julgador, também, sob outro aspecto, aferir o elemento subjetivo do comportamento, pois a boa-fé é requisito indispensável para que se confira conteúdo ético a tal comportamento. 9. Não é possível a aplicação da referida excludente de culpabilidade ao delito do art. 337-A do Código Penal, porque a supressão ou redução da contribuição social e quaisquer acessórios são implementadas por meio de condutas fraudulentas – incompatíveis com a boa-fé – instrumentais à evasão, descritas nos incisos do caput da norma incriminadora. 10. Hipótese em que o conjunto probatório não revela, em absoluto, a precária condição financeira da empresa. Nítida é a deficiência da prova de tal condição, não havendo nos autos um só documento que permita concluir por modo diverso. Ap. 516/DF – Distrito Federal – Ação Penal – Relator Ministro Ayres Britto, Revisor Joaquim Barbosa – Julgamento 27/09/2010 – Órgão Julgador Tribunal Pleno

Ainda que o entendimento majoritário esteja inclinado a dizer que o dolo não é especifico nos crimes de apropriação indébita de contribuição social, o fato é que indispensável se mostra a prova irrefutável e inequivoca de que o agente tenha de algum modo se comportado para a ocorrência do evento criminoso. É preciso a demonstração de que antes da consumação do delito, tenha o agente se articulado no sentido de fraudar ou não recolher o tributo (iter criminis), caso contrario estar-se-á diante da responsabilização objetiva, onde não se avalia a conduta mas o fato em sim mesmo, relegando para segundo plano a vontade do agente, o que a priori fere mortalmente os direitos e garantias fundamentais previsto na Carta Magna.

O plenário do Supremo Tribunal Federal, alterando a orientação quanto a não exigência do dolo especifico, veio a decidir que a apropriação indébita previdenciária não consubstancia crime formal, mas omissivo material, no que indispensável que o agente tenha se apropriado dos valores, com inversão da posse. (Inq. 2537, AgR/GO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe-107, 12.6.2008).

“O sujeito ativo é quem pratica o fato descrito na norma penal incriminadora. Somente a pessoa física tem a capacidade de delinquir neste tipo penal (vide art. 225, §3º, da CF). Logo, jamais será a pessoa jurídica o autor do crime, dada sua incapacidade.

(…)

O texto da lei transmite a noção de responsabilidade objetiva, dada a presunção de responsabilidade daqueles que participem ou tenham participado da gestão da empresa. Todavia, na interpretação dessa norma deve-se afastar a responsabilização penal objetiva, a qual não encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico. A simples comprovação de que o sujeito participava da gestão da empresa não basta para incriminá-lo; há que se demonstrar que tenha concorrido para a ocorrência do resultado. Deve ser responsabilizado o administrador que, de fato, tinha poder de mando, isto é, que decidia pelo não recolhimento das contribuições arrecadadas. Não é suficiente para a condenação figurar o nome do réu no contrato social ou congênere; deve ficar caracterizado ter sido ele o responsável pelo atendimento do dever legal.”[1][1]

É sabido que muitas vezes o comportamento dos sócios não pode sequer ser tido como omissivo, porque mesmo não tendo a intenção de fraudar o fisco ou recusar o pagamento da contribuição, tendem a priorizar a geração de emprego, e enquanto em atividade, vislumbram a possibilidade de conseguir superar as dificuldades momentaneamente apresentadas.

Ate mesmo a lei de falência prevê as hipóteses de recuperação judicial. A alteração da lei anterior teve por fim precípuo a preservação da fonte de riqueza e emprego, ao contrario do que antes ocorria, com o encerramento abrupto das atividades, em prejuízo de todos os credores, privilegiados ou não e da sociedade de um modo geral.

Lei 11.101, de 9.2.2005

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

A exigência do credito previdenciário, estando embasado em multa por descumprimento de obrigação tributaria, sequer possui a natureza de privilegio quanto a sua cobrança, a qual expressamente a lei o exclui na classificação dos créditos. (art. 83, inciso III, da Lei de falência).

Então, não se pode, data vênia, dizer que aquele que não teve a posse ou detenção da contribuição possa ser criminalizado. O Direito é um ramo dinâmico, que não admite interpretações errôneas, a fim de prejudicar o ser humano. É preciso discernimento claro quanto a imputação do delito e a privação da liberdade de alguém, eis que esta deve ser aplicada aqueles que realmente tem por comportamento habitual a causação do dano, não olhando a quem será atingido.

Autor: Luiz Carlos S. Souto de Amaral

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Autor: Luiz Carlos S. Souto de Amaral